Exactidão Incógnita

Se uma resposta pode demonstrar argúcia, não menos o alcança uma pergunta [se é que não ultrapassa], pois quem pergunta deve saber - como o sabe um poeta - que ao perguntar pelo vento observa que ramos espantam os passarinhos. Sim!, que um poeta - das letras, dos pincéis, da voz, de que arte for - não existe sem amor:

pela água do céu em chuveiro,
o vento oblíquo que molha,
por um trovão passageiro
que enraíza o ar e o chão,
e um passarinho seco no ninho:
no côncavo da sua mão.

Tudo que existe é milagre aos olhos de um apaixonado pela vida, e ao poeta sobeja em vantagem a vontade de sentir cada novo verso como se estivesse a aprender a escrever; em cada novo traço como se aprendesse de novo a pintar.

Talvez seja esse o desígnio do poeta: eternamente aprendiz da vida, incessante busca de a compreender num conjunto de versos de rima oblíqua, num quadro inacabado, colorido a sépia pela saudade, ou num dedilhar de cordas presas à traqueia.

Talvez seja a rejeição da ignorância pelo fazer: porque o que faz não é ignorante, antes o é aquele que, sabendo, não faz ou não ensina a fazer. Ensinar sem forma ou - mais exactidão - sem enformar. Ensinar a aprender: aprender a ser singular naquilo que se faz, que o que se faz torna-se único quando se encontra com o que se é, e só caminhando por erva fresca, pouco pisada, deixamos marcas do nosso caminho.

E não esquecer nunca a preguiça - oh!, que pressa tinha de morrer quem inventou o tempo. Um ócio nunca é suficientemente longo para consultar o batalhão de letras e perguntar ao dicionário: quanto de amizade há no amor?

São essas incógnitas que colocamos à distância da nossa ignorância para saber exactamente que arte é esta de viver - como se a exactidão fosse uma virtude a olhos outros que não aos que a si mesmo se enganam.


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[O texto é um arranjo de uma reposta, por escrito, a uma entrevista para um cargo - que se deveria inspirar em Mário Quintana; a fotografia foi tirada na Sé de Viseu, obra intitulada "Rosto/The Face", Rogério Timóteo @ Sé de Viseu, 02 de Maio de 2016]

Tempo e Memória

A perspectiva com que observamos um fenómeno é diferente consoante a distância a que dele nos encontramos. Em assuntos da memória, a distância conta-se, mede-se e sente-se em unidades de tempo pouco linear, raramente proporcional.

Relembro os meus anos de ensino secundário com um suspiro saudoso. Esses anos não estão muito distantes - mais o parece, como tudo que se apresenta inalcançável e tão mudado que não o concebíamos possível.

Então, os dias tinham mais tempo e podíamos observar o presente tornar-se passado. O mundo não era olhado pelo ecrã de um telemóvel, mas a pontualidade era uma qualidade natural. A Internet doméstica era tão lenta que podíamos torrar uma fatia de pão enquanto o ruidoso Modem 56Kb abria o Yahoo. Não existiam Facebook e Youtube, e nenhuma destas inexistências cerceava capacidade de comunicação e entretenimento. Au contraire!

Os tempos livres eram uma miríade de aventuras que apraz contar, em espontâneo, quando a memória as recupera, com palavras diferentes e novas perspectivas de imaginação porque não ficaram gravadas em exposição cíclica nas redes socais.

Todos os dias eram uma oportunidade de estar com os amigos na rua, nos jardins e parques públicos, ou em casa, e não era preciso procurar disponibilidade na agenda ou conciliar tempos livres com um sem fim de antecedência. A rotina diária era uma grata fatalidade que nos juntava.

Alguém nos alertava para a armadilha que é ser adulto e nós - a inocência de quem acredita que o tempo é uma conquista sucessiva que não admite a perda - desconfiávamos de qualquer ratoeira no tanto de antemão com que nos desvendavam essa armadilha! Porque queriam tanta demora no passar dos dias, se a nossa pressa era a carta de condução?

Que aproveitássemos, mas que estudássemos - era o que nos diziam -, senão ainda haveríamos de deitar as mãos às orelhas - não para ficarmos mudos aos conselhos, como então, mas para nos penitenciarmos: ao jeito de as esticar em repreensão, e com retroactivos!

Que quando fossemos adultos não poderíamos gritar ao mundo os nossos verdadeiros sonhos sem nos contraporem que o essencial é o dinheirinho para a vidinha, para o dia-a-dia, que fazer o que se gosta vem depois.

Que não poderíamos voltar a correr à chuva, só para nos encharcamos, sem sermos olhados de soslaio, imaginando-nos com uma camisa de forças, empurrados para uma sala que cega de branco, de um Hospital Psiquiátrico;

Que aproveitássemos, que aproveitássemos... que aproveitássemos agora - que era então-, enquanto podíamos e devíamos.

E eu que nunca me neguei a seguir conselhos que viessem em proveito próprio!
E nós a partir, de paragem em paragem, a acenar aos que vão e aos que chegam, sem nos lembrarmos de acenar ao nosso reflexo no vidro do autocarro, espelho em tardes escuras de Inverno, que também nós ficamos e partimos em cada viagem: entregues à esperança, de saudade na bagagem. Nem sempre foi ou será fácil, é o que sabemos ou aprenderemos, mas há que fazer por engrandecer a alma, como me ensinou a primeira lição do Secundário, gravada a ferro na parede da Escola Emídio de Navarro: "Tudo vale a pena se a alma não é pequena".


Não há garantias. Poderemos não conquistar tudo ou até nada do que desejámos, ainda que façamos tudo tão bem quanto nos é possível. Mas o maior arrependimento não superará a certeza ingrata de termos esvaziado a alma sem tentar.

Sei que já o disse: a perspectiva com que observamos um fenómeno é diferente consoante a distância a que dele nos encontramos. Em assuntos da memória, a distância conta-se, mede-se e sente-se em unidades de tempo. É no presente que se constroem as memórias com as quais poderemos voltar no tempo, um dia, num futuro qualquer.

E voltaremos, e bem acompanhados, se cultivarmos verdadeiras amizades, aventuras inesquecíveis, corrermos atrás dos sonhos como se perseguidos por uma régua apontada à palma da mão ou à bochecha do rabo, se valorizarmos o que cada dia conquistamos - mundialmente reconhecidos ou a contemplar a Lua, no anonimato do logradouro lá de casa, com a pessoa por quem estamos apaixonados.

Se o preço a pagar for esta saudade e esta nostalgia, pague-se de bom grado, e continue-se a fazer por aumentar a conta no futuro pelas boas memórias que se preservam do presente.

Porque, afinal, tudo o que somos se resume a isso: tempo e memória.

Da Força das Circunstâncias

Lá estava: sentada, torta para a lateral, antebraço no braço do sofá, ais mudos. Doçura da casa envelhecida, aquecida pelo calor do fogão a lenha, conforto adensado pela bruega que cai miúda para lá da janela  estanque de alumínio.
A avó à minha espera.

Conversa que puxa conversa, lá pescou à linha o tema das dores. Que a primeira dor de ossos a tinha sentido aos trinta e sete anos, andava a trabalhar a terra, ficou curvada como uma velha de oitenta, dizia-me agora, aos oitenta e dois, sem caminhar vergada. Com dores, sim, nos joelhos - maleita de família-, mas não marreca da espinha.

E um bom amigo meu, vinte e poucos, faz um movimento e fica encravado, com o tronco a uns cento e vinte graus em relação ás pernas. Ali ficou, especado como uma vara por onde trepam feijões, mas em arco gótico, imóvel e indefeso como nem algumas pessoas de oitenta e dois que conheço.
Que lhe trouxessem pasta e escova de dentes, não queria ser atendido no hospital com hálito a digestão feita há umas horas. O problema foi levar a água do copo à boca sem lhe escorregar pelos beiços.
Lá foi. Ciática.

A força das ideias e expressões não é maior que a força das circunstâncias. Excepto quando coincidem.

O Lugar

Recebe-me um braço alcatroado, estendido, como a acompanhar uma vénia, por entre a cortina nevoeiro de Janeiro que conduz à boca de cena. Convida-me assim a entrar por um corredor perfumado pelas flores de globoso algodão amarelo das acácias-mimosa, e pétalas rosas e brancas das flores de cerejeira de Março - colorido do Oriente, prenúncio da serenidade que sempre encontro.

Acolhe-me, ao fundo, a instalação que dá vida e luz ao confessionário onde me sento: banco de ripas hirtas, madeira envernizada, dispostas em ondulante assento e encosto para o corpo. Está frio em Abril - queima a velha o carro e o carril, ensina-me meu pai -, e anuncia-se a Lua num final de tarde já luminoso onde posso folhear umas páginas do livro que me acompanha.


Maio está aí, vou ter com ele a uma esplanada onde bebo um café Delta, curto. Leio mais um capítulo e preparo-me para voltar antes que as chaminés espalhem uma teia perfumada de lenha queimada para afastar os últimos frios - e uma tábua que sobrou, ainda em Maio se queimou, acrescenta meu pai.

Subo agora por umas escadas que tantas vezes contei e nunca lembro o número. Tudo está verde e a florir em Junho, e à hora de jantar de Julho, um filtro natural de sol poente transforma todas essas cores em nostalgia.

Umas flores cor de rosa - desconheço o nome -, em forma de boca grafonola ou funil para ouvir melhor, apontadas para a rua, espreitam por cima do muro do Convento - ao qual atirávamos pedras para partir os vidros lá espetados e arreliar as Irmãs. Perscrutam-me os passos que reconhecem nas memórias de rebeldias pueris - já citadas.

Volto ao banco de ripas, agora aquecido pelo Agosto mais quente de que há registo. Todos os anos me parece o mais quente dos que a memória alcança. Excepto o do ano que vem, que será mais fresco - e então voltarei cá para redigir este acrescento.

Como uma avó com saudade - qualquer ausência é mais sentida para quem o tempo é precioso -, o meu lugar aguarda-me com uma doçura serena que só é capaz quem sabe esperar. Quero aprender essa arte da espera, mas depressa, que Setembro está perto para me tirar mais um ano ao muito que há para fazer - que saberá sempre a pouco.

Aguardo pela noite nostálgica de Dezembro. Fria, um raio de poeira gélida traça um percurso de luz: dos holofotes aos metais de uma estrutura, onde se desfazem num fumegar frágil e efémero.

De volta, pelo mesmo corredor, agora atapetado de folhas moles, já se vislumbram maduros os dióspiros que, abandonados na árvore, parecem decorações natalícias esquecidas nas tardes lavadas de Janeiro.

É este o meu lugar. E pudesse eu arrancar um dedo, enterrá-lo em terra fértil, com vista para a minha paisagem, e dele nascer uma árvore ebúrnea cujo tronco e ramos fossem meus ossos, a folhagem pele, a caruma cabelo, e meus olhos os frutos que apreciassem perpétuamente o céu e o horizonte, o nascer e o pôr do sol, e ser lugar para quem se procura a si mesmo.

O Mensageiro Ecuménico

No espreguiçar da vida, bem cedo nas manhãs frias de Inverno em que as palavras congelam ao passar os lábios, interrogava-se sobre o destino da mancha de fumo que lhe saía pela boca.
Onde iriam descongelar as palavras?, desaguar as mensagens? Entenderia e atenderia a Natureza aos seus pedidos? Serviria de mensageiro ao destinatário?, como as linhas telefónicas, mas sem fios? Um sistema ecuménico de comunicação ao nível atómico?

Por isso fazia declarações de amor, formulava desejos e promessas, confessava-se, desculpava-se, e soprava ao mundo os pensamentos transformados numa poalha húmida e leve, como o náufrago que lança a epístola engarrafada à vastidão do mar. Com cautela, suspicaz, sem grandes revelações, não fosse o discurso transviado por ventos cruzados.

Depois indagava a relação entre os acontecimentos quotidianos e os pedidos enviados por nevoeiro de hálito matinal: aparentemente - concluiu - sem relação causal, correlação ou coincidências em número a considerar. E o sistema caiu no esquecimento.

Décadas mais tarde, numa noite fria de Dezembro, na mesma ladeira de subida íngreme que tantas vezes o levara à escola, sorriu para si: talvez restassem moléculas suspensas dessas nuvens pueris de memórias vaporizadas que, então aspiradas pelas narinas, o lembraram dessa infância feliz. E não resistiu a reactivar o sistema.

Arfando, a comer vogais às palavras, exalou um parágrafo num rasto de evaporação que por agora não assentará nestas linhas.

Brevíssimo Ensaio - O Processo Criativo

Espera-se e tarda que a inspiração nos mie ao ouvido um merecido encómio, uma observação oportuna, uma imagem de enlevo.
A coisa inspirada é felina e sombra, foge-nos e esconde-se quando corremos atrás dela, surge por vontade própria, em pés de vento.
Com tal subtileza arranha a imaginação, que coçamos o couro, absortos na procura, confundindo-a com o sortilégio de uma brisa de desalento que arrepia o oco do crânio.
Procura-se, então, a arte nos artifícios líquidos que extasiam o espírito, nos sons bucólicos que apaziguam a neurose ou nas memórias de amores que nos fervem o sangue. Sulca-se um aparo no osso, conjectura-se um pincel de cabelo, e pinga a suor o que cisma no coração.